“…é impossível ser artista e não dar atenção a leis e limites. A arte é limitação; a essência de todos os quadros é a moldura. Se você desenha uma girafa, deve desenhá-la de pescoço comprido. Se, dentro do seu método criativo arrojado, você se julgar livre para desenhar uma girafa de pescoço curto, de fato descobrirá que não está livre para desenhar uma girafa. No momento em que se entra no mundo dos fatos, entra-se no mundo dos limites. Pode-se libertar as coisas de leis externas ou acidentais, mas não das leis da sua própria natureza. Você pode, se quiser, libertar um tigre da jaula; mas não pode libertá-lo de suas listras. Não liberte o camelo do fardo de sua corcova: você o estaria libertando de ser um camelo. Não saia por aí feito um demagogo, estimulando triângulos a libertar-se da prisão de seus três lados. Se um triângulo se libertar de seus três lados, sua vida chega a um desfecho lamentável.”
G. K. Chesterton
Gosto desse trecho, gosto demais de Chesterton, ele usa muitas figuras de linguagem, muitos paradoxos, estrutura de raciocínio complexa, como a cabeça de um autista. Fico bugado com suas ironias e hiperboles, às vezes, mas ele é um grato amigo. Desde que recebi o diagnóstico já ouvi de tudo e uma dessas interlocuções, que ocorre diversas vezes, é curiosa: o autismo não te define. Poxa, claramente define, certamente limita e isso é bom, diz respeito a quem sou e como sou. Se me tirarem o autismo, o TDAH, a depressão e minhas dores físicas, vai me livrar das quatro arestas dessa moldura, desse quadro por pintar. É uma falácia dizer para alguém ser quem quiser ser, a partir da realidade e nossas limitações, fazemo-nos, deixamo-nos fazer. Quando as limitações me apertaram, quando o pincel queria ultrapassar as molduras, eu aprendi sobre gratidão, sobre espera, sobre aceitação, sobre algo que une toda a humanidade, que marca toda a existência e pode ruir vidas ou dar sentido a existência, o sofrimento. Depender de outras pessoas é duro, ser julgado pelo que não somos é complicado, não conseguir se expressar é esmorecer, que seja um pouquinho, na solidão… Mas não passar por isso tudo é negar a sua humanidade, não somos deuses. Cada pessoa é mundo, amo ouvir e repetir isso, traduz o imperscrutável. As pessoas têm dificuldade de entender que o mundinho autista tem leis físicas diferentes, funciona diferente, nossa gravidade é diferente, nossa ingenuidade é cheia de oxigênio, nossa sinceridade cobre as ruas como asfalto, nosso afeto é fluído como o ar. E, poxa, é um mundo tão cheio de cores e detalhes que por vezes não entendo os outros mundos, seja direto, explique-me com calma, não entendo olhares e caretas… Nosso olhar não diz o mesmo que o de vocês e nossa solidão é diferente da neurotípica, se assemelhando a tantas outras. Por fim, eu nem poderia estar usando “nós”, ou metalinguagem, não falo para algum leitor, falo pra dentro, para que minha voz ecoe no meu mundo limitado, mas tão meu.
Só quero um pouco de sossego, não ser exposto por minhas limitações, nem tão julgado pelo que não conheço. Sei que muita gente tem um quê de ingenuidade, ou ouvido aguçado, muita gente é tímida, tantos outros se expressam mal, mas eu não sou tido como deficiente a toa. Se não entendem isso, eu não me importo, reitero, só quero um pouco de sossego. Não ser cobrado pelo que não consigo fazer nem me sentir mal, por, apesar de tantas dificuldades, parecer normal, não ser entendido no que me pesa. Não procuro meu lugar, não quero ser uma minoria, não quero ser coitado, não quero privilégios. Meu lugar é dentro de mim, minha dignidade é intrínseca à minha humanidade. De dentro para fora eu exerço minha liberdade, não apesar, mas a partir das minhas limitações, eu mudo outros mundos, à minha maneira, na simplicidade ou na minha complexidade racionalista, com minha ingenuidade e sinceridade, com meu olhar vago, minha voz monótona, com meu hiperfoco em gente, seus tipos, dificuldades e anseios…
Minha namorada (sim, tenho uma namorada) quando assistimos Forrest Gump, disse que me pareço com ele. Não por seu QI 75, mas pela ingenuidade, às vezes, pela sinceridade, por estar tão alheio à realidade que por vezes a observo melhor que as pessoas ao redor. Vale dizer, não somos anjos, erramos, para algumas pessoas somos egocêntricos, ferimos as pessoas, podemos cometer falhas que parecem imperdoáveis, mas somos. Quero servir, ser útil, cumprir meu papel e tal qual o banco que é feliz quando alguém se senta, ser conforto. Das minhas características e excentricidades sei que há de vir algo bom. Estou cansado, é um mundo muito sofrido, são existências muito marcadas e sou pequeno demais para mudar qualquer coisa, não consigo nem mesmo fazer o básico…
Mas que Deus não me liberte do meu autismo, das minhas dores e desatenção, que não me liberte de quem sou, da minha gratidão, da minha compaixão, que a partir da minha miséria, Ele me faça quem devo ser.